Mistérios da migração

Mistérios da migração

27 Agosto de 2021

A capacidade de ir passar parte do ano ao outro lado do mundo é um dos comportamentos mais fascinantes das aves, e encerra múltiplos mistérios, alguns ainda por desvendar.

Porque é que as aves migram?

Em Portugal, todos os invernos recebemos a visita de aves como o grou e o abibe, que aqui se refugiam das intempéries, do frio e da escassez de alimento mais a norte. Por outro lado, na primavera e verão espécies como as famosas andorinhas vêm do sul para aqui se reproduzir. Estes dois cenários ilustram o debate entre cientistas: o comportamento migratório terá evoluído como forma de escapar aos rigores do inverno das latitudes elevadas, ou como forma de evitar as “multidões” nos trópicos, e assegurar maiores hipóteses de ter espaço e recursos para criar a prole? Para deslindar este mistério, cientistas da Universidade de Michigan percorreram a árvore genealógica de cerca de 800 espécies de ave americanas, analisando onde os sucessivos antepassados se reproduziam e onde passavam o inverno. Para a maioria das espécies estudada, os resultados traçam uma rota de norte para sul: aves que inicialmente viviam todo o ano na América do Norte terão gradualmente avançado para sul durante o inverno, até chegar ao padrão atual.

Nalgumas espécies, o comportamento atual ainda espelha esse passado. O chasco-cinzento, por exemplo, é uma ave originária da Eurásia, que no inverno troca a tundra do norte pelo calor de África. À medida que os glaciares no hemisfério norte foram retrocedendo, há cerca de 20 mil anos, a espécie expandiu-se, colonizando a América do Norte por duas vias: pelo Oeste, atravessando o Atlântico Norte até ao Canadá, e por Este, da Sibéria até ao Alasca. Mas, ao invés de encontrar novos territórios de invernada na América do Sul, esses chascos continuam, todos os invernos, a seguir o trilho dos seus antepassados, atravessando o Atlântico e descendo pela Europa até à África Ocidental, ou saindo do Alasca para atravessar a Ásia até chegar à África Oriental: um percurso que faz deles os recordistas de distância percorrida entre os passeriformes.

Mas há aves cuja migração os cientistas continuam, até à data, sem conseguir explicar. É o caso da torda-miúda-do-pacífico, uma ave da família dos airos e papagaios-do-mar, que todos os anos voa do Canadá até ao Japão e à China: uma viagem de quase 8000km, atravessando o maior oceano do planeta, para chegar a um destino onde as condições são aparentemente muito semelhantes às que deixou para trás.

Como sabem quando partir?

Um dos fatores mais importantes é o comprimento do dia: quando as aves se preparam para fugir ao inverno, o encurtar dos dias é sinal de que chegou a altura de partir. Mas esse não é o único sinal a que respondem, até porque quando regressam aos territórios de reprodução, o seu ponto de partida são os trópicos, onde a duração do dia pouco muda. E em estudos em que os cientistas mantiveram as aves em condições em que o comprimento do “dia” era mantido constante (com recurso a luzes artificiais), várias espécies de aves migratórias continuaram a “saber” quando partir. Como? Por um lado, indícios de que o tempo vai mudar, como alterações na pressão atmosférica, por exemplo, parecem induzir as aves a iniciar a migração. Outro fator parece ser a disponibilidade de alimento, com alguns estudos a demonstrar que as aves partem mais tarde em anos em que há menos alimento disponível nas suas zonas de invernada, provavelmente por precisarem de mais tempo para conseguir acumular a energia necessária para a viagem. O mais certo é que todos estes fatores ajudem a determinar o momento da partida, tendo pesos diferentes para diferentes espécies e em diferentes condições.

Como sabem o caminho?

Muitas aves seguem a mesma rota ano após ano, ao longo de milhares de quilómetros, sem recurso a mapas ou GPS. O mistério de como se orientam não está ainda totalmente desvendado, mas temos algumas pistas. Sabemos que as aves conseguem usar a posição do sol e das estrelas, e que conseguem sentir o campo eletromagnético da Terra, embora os cientistas não tenham ainda conseguido perceber exatamente como o fazem. Quando repetem o percurso, usam também pontos de referência visuais para confirmar que estão na rota certa. E, sobretudo no caso das ave marinhas, sabemos que usam também o olfacto.

Já no caso de muitas aves marinhas, por exemplo, as rotas de migração são menos fixas: no hemisfério norte, as aves voam em direção ao sul, nos chamados movimentos dispersivos. Uma ave que num ano passa o inverno na costa de África, no ano seguinte pode invernar no Brasil. Mesmo as espécies de aves marinhas com territórios de invernada mais fixos parecem partir sobretudo com esse instinto de procurar melhores condições, e com o passar dos anos começam a reconhecer locais com abrigo e alimento.

Na viagem de regresso ao território de nidificação, as aves reconhecem a zona onde nasceram. Esta memória permite, em casos em que uma espécie esteja ameaçada, tentar criar novas colónias, ou repovoar colónias de onde a espécie tenha desaparecido. Para isso, os cientistas transferem as crias para o novo local antes de estarem prontas para abandonar o ninho. Quando as crias abandonam o ninho, os pontos de referência que memorizam são os do ninho adotivo, e é a esse local que regressam.

Porque não tomam o caminho mais curto?

Por vezes, a resposta é evidente. É perfeitamente compreensível, por exemplo, que aves que não possam poisar no mar voem ao longo da costa, e que venham até Gibraltar em lugar de tentar atravessar diretamente o Mediterrâneo. Mas outros casos parecem mais extremos.

O garajau-do-ártico (ou andorinha-do-mar-ártica) voa do Ártico à Antártida todos os anos, numa viagem de ida e volta de 40000km. Seria de esperar que o fizesse pelo caminho mais curto possível, mas não. Quando os cientistas equiparam estas aves com transmissores GPS, descobriram que algumas chegam a percorrer quase 100 000km (mais de duas voltas ao mundo). É provável que as aves sejam forçadas a seguir rotas menos diretas para poderem ter onde descansar pelo caminho, e o vento provavelmente também tem um papel nesses desvios.

Como reconhecem o destino?

Quando uma ave parte no seu primeiro voo migratório, como é que sabe quando parar? A resposta, como em tantos aspetos da migração, varia consoante a espécie. Para aves que migram em bandos, é simples: basta seguir os adultos que já fizeram a viagem antes.

As aves voam a velocidades comparáveis às velocidades típicas do vento, portanto muitas vezes as rotas migratórias são definidas, em parte, pelos ventos favoráveis. No sul de Portugal, no outono, o vento sudeste muitas vezes traz consigo os pequenos passeriformes, que deixam de conseguir voar para sul até que o vento mude.

Na altura de regressar aos territórios de nidificação, várias espécies seguem uma rota diferente da que tomaram ao partir. No regresso, tomam um caminho mais direto, pois quem chega primeiro pode escolher os melhores locais para fazer o ninho, e quanto mais tarde se chega menor a probabilidade de ainda encontrar parceiro. Na migração outonal, essa pressa não se põe, e a escolha de rota é provavelmente mais influenciada pela disponibilidade de alimento e refúgio nos locais por onde passam.

Qual o efeito da ação humana?

Um dos efeitos mais generalizados da ação humana ao longo do último século são as alterações climáticas. Não é surpreendente que estas alterações tenham um impacto num processo tão intimamente ligado às variações sazonais como é a migração. Espécies que se reproduzem no norte da Europa, onde o tempo primaveril está a chegar cada vez mais cedo, estão a antecipar o seu calendário migratório; mas pode não ser suficiente. É o caso do papa-moscas. Nos últimos anos, estas aves têm abandonado mais cedo os seus territórios de invernada a sul. Mas, em resposta às temperaturas mais amenas, os insetos de que dependem para alimentar as suas crias anteciparam ainda mais a sua reprodução, pelo que, quando os papa-moscas chegam, o boom de insetos já passou. Tal como o papa-moscas, várias outras aves migratórias vêm a sua reprodução comprometida por este desfazamento entre os ritmos de resposta de aves, insetos e plantas às alterações climáticas. E, para complicar ainda mais, para muitas espécies estas alterações não se fazem sentir da mesma forma ao longo de toda a sua rota migratória: sair mais cedo dos territórios de invernada, além de permitir menos tempo para acumular as calorias necessárias para a viagem, pode implicar encontrar mais tempestades e mau tempo pelo caminho, pois no sul da Europa, por exemplo, a chegada do tempo primaveril não se antecipou ainda tanto como no norte.

Entre o amainar das condições climatéricas e o aumento do alimento disponível graças à presença humana, aves como a cegonha-branca poderão estar a abandonar de todo a migração nalgumas regiões, incluindo a Península Ibérica.

Para as que continuam a empreender estas viagens regulares, a presença humana traz ainda outros riscos. Para os pequenos passeriformes que atravessam continentes, e que voam sobretudo durante a noite, orientando-se pelas estrelas, as luzes dos grandes centros urbanos são, literalmente, desnorteantes. Mesmo que consigam evitar embater em edifícios (sobretudo arranha-céus) são forçadas a dispender energia extra, chamando e esvoaçando desorientadas, e a exaustão deixa-as mais vulneráveis a outras ameaças. Nos Estados Unidos, a Audubon criou o programa Lights Out, que, à semelhança dos apagões que a SPEA promove nos Açores e Madeira para proteger as aves marinhas, incentiva populações, empresas e entidades públicas a desligar as luzes nos períodos mais críticos da migração.

Outra ameaça, infelizmente muito significativa em Portugal, é a captura ilegal. Todos os anos, milhares de aves são mortas ou apanhadas em armadilhas, para serem vendidas como petisco ou animal de estimação. Uma ameaça que a SPEA está a combater, batendo-se por melhor legislação e trabalhando com as autoridades para melhorar a eficácia do combate a estes crimes, em projetos como o LIFE Nature Guardians.

Vale a pena?

O grande número e variedade e espécies de ave que anualmente se deslocam entre territórios indicia que, apesar de todos os riscos, a migração compensa. Num estudo publicado em 2017, investigadores do Instituto Max Planck de Ornitologia, na Alemanha, demonstraram que os melros que migram para sul no inverno têm maior probabilidade de sobreviver do que aqueles que permanecem todo o ano na Europa central.

A migração de aves parece ter vindo para ficar, para gáudio dos observadores de aves e dos investigadores que poderão continuar a deslindar os mistérios deste comportamento fascinante.

 

Este artigo foi publicado na revista Pardela nº 64 (Primavera/Verão 2021), a revista para sócios SPEA.